Artigos & Opinião

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Professores que fizeram uma revolução contando histórias

Por Ignácio de Loyola Brandão (*)

Sábado - 14/10/2023 às 18:41



Foto: Arquivo pessoal O escritor Ignácio de Loyola Brandão
O escritor Ignácio de Loyola Brandão

Iaia era o apelido familiar de Cristina Machado, minha madrinha de batismo e minha primeira professora. Nos anos 40, ela tinha uma pequena escola Primária, hoje Fundamental, em Araraquara, onde nasci. E quando meu pai comunicou que ia me matricular no Grupo Escolar, de ensino público, ela reivindicou: “Faço eu a educação de meu afilhado”. E o fez por alguns meses até que, por razões que ficaram sem entendimento, ela teve de vender sua “escolinha”, como dizia cheia de carinho. Emocionalmente nunca se recuperou, foi uma longa amargura.  Passou a dizer aos mais próximos: “Você não sabe o que é ser professora e não dar aulas, um vazio”. Mistério longínquo que pretendo colocar em um conto ou romance. Iaia morreu há décadas.

Em l965, quando levei a ela meu primeiro livro publicado, Depois do Sol,  ela me disse: “Agora vejo que valeu. Você aprendeu logo as letras. Teve dificuldade no F e não entendia para que servia o W. E me lembro no dia em que chegou em casa e me disse que tinha lido A Bela Adormecida, primeiro livro que leu de cabo a rabo, e não entendia como uma princesa morta revivia com um beijo. Eu te expliquei que isso era a magia. A literatura é mágica.”

Hoje, depois de ter escrito 50 livros, sei o que ela quis dizer. Se sou um escritor e cheguei a Academia Brasileira de Letras, e também a Paulista, foi por causa de meus professores. Porque se eles são fundamentais na formação de um cidadão, são mais ainda na de um escritor. 

A dúvida de uma professora

Jamais esqueço Lourdes Prado, que me ensinou, depois da Iaia, que escrever “é olhar para a vida, conversar com as pessoas, perguntar, mas, principalmente, ouvir, sentir e passar para o papel.” E Ruth Segnini , a terceira mestra que nos dizia: “Escrever pouco, dizendo muito,  é fundamental, aprendam a economizar palavras.”

As duas fizeram algo essencial, nos davam listas de palavras para trazer o significado, tínhamos de perguntar aos pais, tios, avós e, também, descobrimos o dicionário.  “Quanto mais palavras souberam, melhor vão escrever,” elas repetiam como um mantra.

Ruth estava ainda viva, passara dos noventa anos, quando tomei posse na Academia Brasileira. E, por intermédio do irmão dela, me enviou este bilhete: “Ignácio, a vida inteira carreguei uma dúvida que, às vezes, me angustiava. Teria eu escolhido certo a carreira de ensinar? Neste momento, em que você toma posse nessa academia, descobri que sim. Estou aliviada.” Antes de meu discurso, li esta mensagem, aplaudida pelos meus companheiros imortais.

A palavra foi feita para dizer

No ginásio, Jurandyr Gonçalves Ferreira nos entregou uma dica fundamental: “Sigam Graciliano Ramos, que dizia: a palavra não foi feita para enfeitar. E sim para dizer.” Assim descobri uma obra- prima, Vidas Secas, que considero dos melhores romances de nossa literatura. Joaquim Pinto Machado, ou Machadinho, que lecionava química e português no curso científico, pedia: “Tragam as palavras mais estranhas, loucas, que encontrarem em um livro, ou dicionário ou jornal e revista.” Depois, ordenava: “Agora, escrevam uma história usando essas palavras.” Aprendemos a frequentar a biblioteca municipal  e a pesquisar.

Tive uma professora chamada dona Mariquita, que lecionava ciências naturais, ou biologia. Ao explicar as células ou qualquer outro ponto, ela nos contava histórias e entendíamos tudo, seduzidos.  Era fascinante. Mariquita foi a mãe de Ruth Cardoso, casada com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, portanto, a primeira-dama,  também professora, que, com o Solidariedade, batalhou pela alfabetização de milhões de crianças.

A escola onde se lia muitos livros

Em toda minha carreira, a história que mais me impressionou, envolvendo professores e alunos, aconteceu no Piauí. Há vinte anos, ao chegar em Teresina para participar do SALIPI, Salão do Livro  do Piauí, evento tradicional, fui recebido pelo cronista Wellington Soares, um dos idealizadores do evento, que, a caminho do hotel, me disse que na cidade havia uma escola em que os alunos liam de cinco a oito livros por mês.

- O quê? No Brasil? Nem na USP ou na UnB, de Brasília, ou na Sorbonne, na França, ninguém faz isso, está inventando? 

- Vou te mostrar, porque foi uma revolução provocada por professores.

Percebi que ele mudou de direção e, em vez de irmos para o centro da cidade, onde estava meu hotel, seguiu rumo à periferia. Rodamos até chegar a um bairro longínquo. Estacionamos diante de uma construção que tinha muros brancos, limpíssimos, sem um único grafite, rabisco, frase, desenho. Nas janelas, nenhum vidro quebrado, nenhuma grade. 

- É aqui!

Acostumado a escolas de periferia em São Paulo, Rio de janeiro e outras, com muros altos, pesados, grafitados, janelas com barras de ferro, portões fechados com correntes, perguntei:

- É uma escola? E que bairro é este?

- A escola é a Municipal Casa Meio Norte,    bairro Vale Quem Tem. Dos mais carentes da cidade, habitado por marginais de todos os tipos, violento. Uma das regiões mais complexas de Teresina. 

- E quem estuda aqui? 

- Ensino fundamental, do primeiro ao quinto ano, e os alunos são filhos desta gente carente, muitos marginais.

- Aqui é onde leem de cinco a oito livros por mês?

- É!

Entrei, incrédulo. Fui recebido por mulheres nordestinas magras, com enorme olhos abertos em  um sorriso de satisfação, abismadas com a  súbita presença de um escritor de renome. Eram as professoras que tinham feito a “revolução”.

Fomos direto à biblioteca, bem abastecida e fui olhando fichas de retirada, incontáveis. Pois havia mesmo alunos que chegavam a oito livros por mês. Cinco, a maioria. Autores como Ziraldo, Ana Maria Machado, Lygia Bojunga, Pedro Bandeira, Marina Colasanti, Ruth Rocha, Silvia Orthof, Monteiro Lobato, Eva Furnari, e  também Robinson Crusoe, Tarzan,  Harry Potter, Guerra nas estrelas, etc.

Fui de classe em classe, recebido com estupefação. Logo se descontraíram, uma jovem me mostrou um poema no caderno.

“Se um dia eu

na droga cair,

faça tudo

para que dela eu possa sair”.

“O pai é dos maiores traficantes do estado”,  informou a diretora. 

Fui de classe em classe, me mostravam contos, crônicas, todo tipo de textos, perguntavam como era ser escritor, fomos ficando íntimos, felizes, me apalpavam. Passei quase a tarde toda ali, não queriam me deixar sair, comi um bolo de mandioca generoso, mandado buscar, às pressas, com café, em uma cozinha limpíssima – que os alunos mesmo limpavam, porque, disse a diretora, a escola é deles, eles cuidam.

Então, as professoras e Wellington me contaram a história. Fiquei siderado. Aquela tinha sido a pior escola da cidade, do Brasil, do mundo. Bagunça total, rebeldia absoluta. Era impossível dar aula, não havia disciplina, normas, ninguém obedecia ninguém, fumavam maconha, brigavam, assediavam as meninas, faziam o diabo, diante de professores impotentes. Então, após mil tentativas a decisão foi a de fechar a escola, jogar a toalha.

Foi quando um grupo de professorinhas determinadas, algumas da própria escola, outras vindas de outros bairros, pediram um tempo para assumirem. “Temos uma ideia, queremos tentar”. Não disseram qual era a ideia, tratava-se de uma experiência emocional.  Assumiram. E cada dia, de pé na frente da turba, o que faziam? Contavam histórias clássicas, folclóricas, anedóticas bem humoradas, de todo os gêneros.

Nada mudou, a bagunça, a rebeldia continuava. Então, uma das professorinhas percebeu que duas meninas, caladas, prestavam atenção. E ambas contaram a outras, e duas viraram, cinco, cinco se tornaram dez, homens e mulheres foram mudando gradualmente. O interesse se propagou, as classes foram silenciando, se comportando silenciosas, a ouvir, fazer perguntas, contando casos do próprio bairro, como fossem cronistas locais. 

Um salto para as alturas

O silêncio e a atenção dominaram por fim, e as professoras passaram a dar aulas de matemática, português, história, geografia, etc, por meio de histórias clássicas ou por elas adaptadas, inventadas.

Desenvolveram os próprios métodos que funcionaram. Não foi fácil, nem de uma hora para a outra, mas foram persistentes, resilientes, determinadas, quase se esgotavam e se refaziam. 

Venceram. As professoras tiveram a adesão de outros professores, idealistas, que pediam para serem transferidos para lá, adorando atuar em uma “revolução” didática, que se firmou e cresceu agigantou-se. 

No final de um tempo, a Casa Meio Norte recebeu um prêmio como uma das melhores escolas da capital, depois do estado, enfim, do Brasil. Cresceu, conseguiu patrocínio de empresária, tornou-se modelo. 

Qual é o método hoje? De acordo com Rutneia Vieira, coordenadora pedagógica da unidade de ensino, "os alunos recebem orientações singularizadas e são estimulados a conversar sobre suas emoções, com um currículo alicerçado na leitura e no raciocínio lógico”.

Ao voltar a São Paulo, publiquei uma crônica sobre a escola, que repercutiu tanto que a incluí em meu livro O Mel de Ocara. Aquele grupo audaz, de professores de vinte anos atrás, contempla hoje excelentes resultados educacionais. 

A Casa Meio Norte acaba de obter o melhor Índice de Desenvolvimento da Educação (IDEB) do município. Dos anos inicias, com nota 7,9, saltaram para uma proficiência de 198,35 em 2011 e dali para 274,04 em 2021, na disciplina de Língua Portuguesa. Em Matemática, o último resultado é de 261,57.

Não fossem aquelas professorinhas a contar histórias, o que seria hoje?

(*) Ignácio de Loyola Brandão é escritor

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